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A mostrar mensagens de 2017

Os Estranhos Diários de Zenit Sa (Para tu leres) (P)

Eram quase duas da manhã e eu estava no centro de uma cidade portuguesa com um cigarro por acender pendurado na boca há 5 minutos buscando alguém a quem pedir lume, quando finalmente avistei um grupo de 6 ou 7 pessoas. Caminhei para eles com a esperança de ver finalmente saciado o meu desejo de fumar e perguntei educadamente se tinham lume. Todos os meus gestos foram polidos e não houve uma sombra de desrespeito na minha atitude, pelo que a reacção que se seguiu me deixou boquiaberto: - Não, não temos lume! Porque é que havíamos de ter lume, porque somos pretos? “Vou pedir ao preto porque o preto fuma”, é isso que tu pensas? A agressividade descabida no seu tom de voz não é impossível de ser transmitida no discurso escrito, mas ele falou comigo num tal tom de sobranceria e superioridade que eu me senti ameaçado. Eles estavam num número bastante superior e eram jovens, pelo que se quisessem entrar em confronto físico comigo eu dificilmente teria alguma hipótese de os vencer, contud

Os Diários Lunáticos de Zenit saphyr (P)

Regressava a casa vindo do meu trabalho às duas da manhã quando passei por um adorável casal de jovens que se beijava apaixonadamente em frente a um prédio. Eles estavam mesmo a comer-se à bruta, abraçados intensamente e segurando no pescoço um do outro, com a rapariga um degrau acima dele a dar-lhe uma despedida que prometia muito naquela relação. Eu continuei o meu caminho, um pouco mais sorridente por causa daqueles dois e, quando virei, cruzei-me com um homem alto e moreno que estava com as mãos enterradas nos bolsos de um sobretudo verde e com os olhos fixos postos atentamente nos amantes. Aquele voyeur parecia ser um homem parecido comigo, folgazão e jovial, sempre pronto para a brincadeira e para gozar com a vida. Estava completamente focado nos dois miúdos e nem sequer desviou os olhos deles quando me dirigiu palavra: - Já viu aqueles dois ali? Estão há dez minutos na marmelada em frente ao prédio. Não podem entrar? Ao menos iam para ali - apontou para um ponto morto, onde

O Meu Poder (6) P

Por vezes tenho o poder de invocar relâmpagos e trovões. Isto não se trata de uma coisa que eu consiga fazer sempre, está mais que provado que nem sempre que eu quero que caía um trovão acabe por cair um trovão, mas a única vez que eu fui confrontado com a obrigação de provocar um trovão, consegui provocá-lo bradando aos céus para que ele surgisse. Estava na Roménia nas rodagens de um filme do meu grande amigo Ivos Strapunaris sobre uma pobre família da região dos Cárpatos e chovia a cântaros num dia em que já tinha havido alguns trovões, contudo nenhum desses trovões tinha sido captado pela câmara de filmar. O plano que filmávamos mostrava essa família a transportar um caixão com o cadáver da avó para uma aldeia vizinha com o intuito de a enterrarem lá, uma vez que não havia cemitério no triste e abandonado lugar em que viviam. Era um plano lento, muito fúnebre e violento. A família era fustigada pela intempérie e as crianças quase que voavam levadas pelo vento. As gigantes montanhas

Os Diários Lunáticos de Zenit Saphyr (23 de Fevereiro de 2016)

As ruas desconhecidas cheias de desconhecidos. Todos os bares abertos. Bares desconhecidos. Todos os olhares desconhecidos, vêm de olhos nunca vistos que vêem os meus olhos brilhantes que, por sua vez, soltam reflexos surpreendentes e fazem cair prostrados os transeuntes do mundo perante um tão bondoso olhar. Os raios do meu olhar espalhariam harmonia na Faixa de Gaza, silenciariam as armas incessantes de uma guerra sem fim. Entre beligerantes eu ergueria os meus braços e ambas as facções acenariam com bandeiras brancas e pombas de todas as cores surgiriam vindas de todos os lugares com um ramo de oliveira no seu bico. Os guerrilheiros curvar-se-iam, esquecendo os seus antigos deuses ultrapassados e uma luz intensa erguer-se-ia de mim e ofuscaria os seus olhos. Eu serei o Deus eterno dos povos quando estabelecer a paz nos mundos. Zmrtvýchvstání - palavra checa para renascido zmŕtvychvstanie - palavra eslovaca para renascido Não inventei nada de novo. O Nadir Veld renasceu numa lág

Comiseração (54) P

Risquei o número 47, apesar de não havia nenhuma razão para riscar o número 47 daquele boletim de Bingo. Neste jogo, os jogadores, concentrados no som e no ecrã, vão riscando os números à medida que eles saem para terem uma noção dos que faltam para completarem o seu cartão e então poderem reclamar o prémio com alegria jubilosa. Com a saída do número 47, todos os números que estavam no meu cartão tinham saído, estavam todos riscadinhos e há quatro bolas que eu aguardava ansiosamente a saída da bola nº 47, mas, em vez de gritar "BINGO", eu risquei placidamente o último número do cartão, preenchendo-o completamente, num dos muitos gestos irrelevantes da minha vida, um daqueles gestos que eu estou sempre a fazer e que servem apenas para deixar para mais tarde aquilo que deve realmente ser feito, aquilo que eu preciso mesmo de fazer. É como se suspendesse o tempo enquanto me entrego ao doce adiamento da obrigação que, eu tenho sempre a certeza, mais cedo ou mais tarde acabarei po

Não Gosto (69) P

Quando estou a tentar dormir, odeio profundamente que um mosquito ou uma mosca faça um voo rasante no meu ouvido. É das sensações mais insuportáveis do mundo, parece que aquele som incómodo entra para dentro do meu crânio e fica ali a zumbir e a vibrar terrores horríveis no meu cérebro. Sempre que isto acontece sou incapaz de adormecer, porque fico sempre receoso que ele me pique ou, muito pior, que possa fazer um novo voo rasante e me arranque do quase sono, por isso acendo a luz e enfrento-o, esquadrinhando com os olhos as paredes do quarto, à procura do pequeno e incómodo insecto. Muitas vezes ele é difícil de encontrar por mais que eu procure. Às vezes dou murros nas paredes para ver se eles se assustam com o impacto, mas há alguns que nem assim se mostram. Quando isso acontece costumo abrir a porta, ligo uma luz da parte de fora do quarto e espero um bocado. Normalmente este truque resulta porque os insectos são estúpidos e têm uma atracção pelas fontes luminosas que nunca compre

Gosto (72) P

Gosto da triste e mui azarada história de Nedeljko Čabrinović, um dos nacionalistas sérvios implicados na morte do Arquiduque Francisco Fernando, cujo assassinato desencadeou a Primeira Guerra Mundial. Čabrinović nasceu em Sarajevo e considerava-se um verdadeiro sérvio, querendo por isso combater a ingerência do Império Austro-Húngaro no seu país. Para isso juntou-se à organização Crna Ruka (Mão Negra), cujo lema era “Unificação ou Morte” e pretendia unificar os países eslavos do sul (algo semelhante à ex-Jugoslávia). Contudo, se dependessem de Čabrinović, os jugoslavos ter-se-iam visto num lindo sarilho. A 28 de Julho de 1914, sete membros do Crna Ruka juntaram-se em Sarajevo para matar o Arquiduque Francisco Fernando, mas formavam um grupo bastante amador, constituído unicamente por jovens, que ainda por cima sofriam de tuberculose e foi por saberem que a morte estava próxima que se arriscaram a matar o poderoso Arquiduque. Čabrinović foi o primeiro deles a entrar em acção. Lançou

Comiseração (64) P

Enquanto regressava a casa de um passeio de bicicleta, reparei que as raparigas que por mim passavam me seguiam com os olhos com aquilo que me pareceu ser um genuíno interesse. A certa altura, quando passei por duas jovens universitárias, tive de ser muito céptico para me convencer que não se lhes aflorava nos lábios um tímido sorriso. Pouco depois, enquanto avançava no passeio, passou por mim um carro com duas raparigas e foi nesse momento que todas as minhas dúvidas se dissiparam. A rapariga que vinha no banco do pendura não só vinha sorridente a olhar para mim como comunicou à amiga alguma coisa que, segundo os seus gestos, me pareceu relacionar-se comigo. Como um pouco mais à frente havia uma rotunda acelerei o ritmo das minhas pedaladas porque era muito provável que elas abrandassem e eu pudesse passar na passadeira à frente delas. Consegui fazer o que inteligentemente previra, elas cederam-me a passagem e pude confirmar que me olhavam, de facto, sorridentes de dentro da viatura.