Assim se Cumpre em Mim a Lei de Talião (9ª Parte)

E então cai, como se tivesse aparecido do céu, num imenso Oceano e a minha visão foi-me restituida. Aquela sucessão de imagens, como um sonho miraculoso, fizeram-me perceber que estava de novo num corpo normal. Sem o poder evitar, pois nada mais via a não ser água, mergulhei no Oceano. Estava nu e por isso a entrada foi muito dolorosa. Voltei à superfície para sentir o ar. Respirei-o com paixão, sem saber se precisava dele ou não, outro dos elementos com misteriosos poderes no submundo das almas. Depois da minha prisão num corpo decepado, um Oceano Infinito para nadar era um luxo. Ah, sentir aquela água envolvendo-me era indiscrítivel. Todo o meu corpo mergulhado nesse outro elemento. Puro e cristalino. Durante dias fiquei ali a boiar, dia e noite, o sol ia e vinha abençoando-me com os seus raios quentes, reconfortantes. Desde que chegara ao Inferno aqueles eram os melhores dias. Ainda assim, naquele Paraíso, a solidão tinha um peso avassalador. Habituei-me áquele quotidiano, pois não tinha escapatória, nadar seria uma busca por nada, pois quando lançava o meu olhar no horizonte abarcava apenas uma imensidão de água. Ao fim do primeiro ano naquela plataforma do Inferno, quando boiava meditando sobre as regras do jogo Eterno, do céu surgiram rápidas nuvens deslizando, aproximando-se de mim, com temor no olhar, apercebi-me que elas estavam conscientes da minha presença, e organizaram no céu uma reunião peripatética. Escutavam-se e apontavam para mim com cólera, uma delas, ficou vermelha e partiu céu fora para nunca mais voltar. Notei que uma das nuvens se foi tornando lentamente azul e começou a liderar as outras aos poucos. Ao fim de vários meses de reunião, todas se juntaram em torno da nuvem azul e tornaram-se numa chama só, que iluminou a noite. Desceram até mim e eu estava a boiar, que era o máximo que podia para as receber.
-Condenado Maldito, há anos que boias sem procurar salvação ou algo melhor! Porque te contentas com uma vida que não é boa? 
-Só por ter medo de poderem vir coisas piores.
-Ah, malvada seja a tua alma, cheia de maledicência. Como nuvens, nada podemos contra ti, mas se fossemos nós o Demónio nunca mais do Inferno sairias, pois quem se contenta assim com tão pouco só pode ser pobre de espírito.

A chama esvoaçou lentamente para longe e começaram a chover peixes vivos, alguns grandes, outros pequenos. Uma baleia caiu perto de mim, provocando grande agitação nas águas. Em cima de meu caiu uma estrela do mar vermelha e eu reconheci-a, como sendo o espírito da nuvem vermelha que partira revoltada. Antes do dilúvio dos animais no mar cuja duração foi de um mês não senti qualquer tipo de vida sob as àguas em que boiava, era essa solidão de que gostava. Estava só eu, o Sol, o Ar e a Água, quatro grandes amigos que se amam. Os animais começaram a aparecer e a importunar a minha estada. Já nem poder boiar sossegado podia... Fui várias vezes atacado por um tubarão branco. Escapei ileso das duas primeiras vezes, mas sabia que ele ia voltar e à terceira, arrancou-me um braço e uma perna. Em dores horríveis, mais uma vez, o meu corpo manchou aquela pequena zona do Oceano com o seu sangue. O tubarão partiu e nunca mais me importunou. Nem ele nem qualquer outro animal subaquático. fiquei a boiar desesperadamente, deixei-me afogar, mas acabava sempre por voltar à superfície. Sem saber o que fazer, decidi começar a beber a Água do Oceano. Fiquei milhares de anos a beber a água salgada do Oceano com o meu corpo deformado, sangrando, sangrando, uma grande dor, uma dor imensa que, ao contrário do que eu pensava, se espalhava para lá da vida. A minha garganta estava seca e doia-me, mas eu continuava a beber sofregamente. No dia em que pousei o meu pé no chão, senti a areia maravilhosa no meu pé, a minha respiração ruidosa, um arfar arrepiante, nem conseguia ser ouvida devido ao lamento dos animais que choravam em gigantescos montes, por eu ter bebido toda a sua água.  Quando acabei de beber toda a água do Oceano, andei ao pé coxinho na areia e uma força interior, talvez devida       ao facto de ter ingerido muito sal, comecei a arder por dentro. Que paisagem singela, uma pessoa ardendo depois de ter bebido toda a Água de um Oceano e os animais lamentando-se por a sua casa sido bebida. De dentro de uma baleia veio um rugido estranho. Ela abriu-se e de lá de dentro surgiu nada mais nada menos que Friederich Nietzsche munido de uma mangueira. Apagou o meu fogo e começou uma louca conversa.

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