Assim se Cumpre em Mim a Lei de Talião (11ª Parte)

Senti a secura do deserto, como uma velha árvore morta erguendo os seus despojos para o céu pronta a arder. A areia parou de me puxar pouco depois de me ter coberto o umbigo. Sugada para as entranhas da Terra, tentei escapar daquela prisão, pensando no mestre Nietzsche, como uma grande recordação, uma experiência que levou aos limites a minha sapiência. Às minhas tentativas fortuitas de escapar seguiu-se uma enorme tempestade que levantou a areia, num vento doloroso. A certa altura vi-me coberto de tanta areia que não conseguia mexer qualquer membro. A tempestade durou um mês e quando cessou, revelou-me o meu futuro próximo: VIVER APRISIONADO NUMA ESTÁTUA DE AREIA, que reproduzia um homem maneta e arquejante, uma obra de arte para ser admirada por ninguém. A garganta encheu-se de areia, por isso a minha respiração era dolorosa. Ali me quedei durante duzentos anos, pensando no pouco que Nietzsche me dissera, mas não conseguia locar as minhas forças motoras para pensar, todas as ideias escapavam. Ao fim desse tempo Deus repôs o Oceano e fiquei no fundo do mar, apreciando a vida subaquática. Foi uma benção miraculosa do Criador, poder ver todos aqueles gigantescos animais do mar, que pareciam ter sido desenhados por extraterrestres e despejados nos Oceanos, as baleias e o mortal tubarão. Eu era a catedral dos peixes. Eles aproximavam-se de mim e contemplavam-me, sem nunca me danificar. No fundo pareciam reunir-se à minha volta para louvar um Deus qualquer e quando eles estavam todos juntos o peixe-maestro fazia uma pequena introdução à razão porque me louvavam. Percebi que todas as Criaturas agradeciam ao Criador fosse de que maneira fosse. Se alguma vez a minha alma se sentiu feliz foi nesse momento, pois senti-me realmente importante ao ser tornado sagrado e a dar algum sentido à existência daqueles peixes. Certo dia notei que um dos peixes do meu cardume me olhava com azedume. Enquanto os outros partiam vi-o lançar um último olhar furtivo e cheio de ódio em direcção aos meus olhos. Mais tarde, nesse dia, ele apareceu, furioso, e destruiu-me. O meu cadáver de areia tombou no fundo do mar e a minha alma libertou-se, mas como se um pesado fardo a atingisse, caiu para o mundo debaixo das areias daquele mar.

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